segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Passando uma tarde com Júlio Gana: histórias de resistência negra

Maykon Santos*

_ (...)Africano tem resistência, menino, africano pagou seu corpo.

Eu juntei, vintém a vintém, um conto e oitocentos para me comprar

e houve escravas, como a mãe Henriqueta,

que juntaram dinheiro para comprar o próprio corpo e mais o das filhas.

_ Mas como, homem de Deus?

_ Ora, como!

Trabalhando, nos aluguéis, nos cafés, vendendo santos ou doces na rua,

e com o auxílio do feitiço. Não ria!

Africano sempre vendeu feitiço aos brancos,

porque os brancos sempre acreditam em feitiços.

Hoje os africanos daquele tempo estão ricos.

O diálogo narrado acima foi noticiado pela Gazeta do Rio no dia 13 de maio de 1905. Quem assinou a reportagem foi o famoso jornalista da época, João do Rio. O mesmo relatava o contato que havia tido com o alufá africano Júlio Ganan durante as comemorações pelo 17º aniversário da assinatura da Lei Áurea.

Entretanto, o jornalista ficou surpreso pelas histórias contadas pelo africano dos tempos de escravidão. Como um típico representante da raça branca, João do Rio fazia parte da primeira geração do pós abolição que se formava a partir do discurso eugenista. Discurso esse que pregava a inferioridade negra em relação aos brancos, como também dava sustentação ao imaginário de que a Abolição havia sido uma dádiva branca aos negros.

Pois bem, uma tarde que João do Rio passou com Júlio Ganan o fez se indagar sobre o que achava saber em relação à escravidão. O alufá já começa dizendo ao branco que “Africano tem resistência”, como a dizer que os milhares de negros que desembarcaram no Brasil começavam uma complexa e riquíssima história de oposição ao sistema escravista. Uma das formas de resistir era comprar a liberdade com seu próprio suor.

O branco João do Rio não acredita no que está escutando e indaga, “Mas como, homem de Deus?” Pela idéia de que tinha da escravidão, era impossível para um escravo ter domínio sobre si a ponto de juntar dinheiro, o chamado pecúlio na época, e comprar sua liberdade. Ganan não exita e responde como. Africanos trabalhavam em diversas atividades econômicas. E, além disso, tinham a ajuda de Deus. Mas não o Deus cristão do branco jornalista. Os africanos, que tinham uma cosmologia extremamente complexa, sabiam usar isso a seu favor e vendiam feitiços, provavelmente de proteção, para os brancos, que temiam a religião dos africanos.

O alufá vai além. Alguns africanos juntaram dinheiro a ponto de comprar sua liberdade e também a de outros. Alguns juntaram dinheiro a ponto de terem se tornado ricos. Júlio Ganan não para por aí. Ele informa a João do Rio que em 13 de maio de 1888 a maioria dos “africanos ou já tinha morrido ou já tinham comprado sua alforria”. Portanto, aquela data “não significa nada para os africanos”.

João do Rio ficou tão impressionado pela conversa com o alufá que a registrou no jornal Gazeta do Rio com um título bastante sugestivo: Negros ricos. Podemos dizer que naquela tarde de 13 de maio, o branco aprendeu muito com o africano. Penso que a partir daquele dia, o jornalista olhou para o passado brasileiro de uma outra forma.

Chegando o 20 de novembro, a sociedade brasileira também tem que começar a passar sua tarde com o alufá. O Movimento Negro vem a décadas tentando desmistificar a visão branca, preconceituosa e falsa, a mesma que tinha João do Rio antes de falar com Julio Ganan, de que o negro era inferior ao branco e nada tinha a contribuir para a civilização do novo país, logo nada tinha acrescentado para a formação de nossa cultura e de nosso povo.

Nossos antepassados, como o alufá Júlio Ganan, sabiam que isso não era verdade. A cultura negra trazida pelos milhões de africanos desterrados forçadamente da África para serem escravos no Brasil se enraizou por todo nosso país, pois como disse Júlio Ganan “Africano tem resistência”.

*Militante do Círculo Palmarino

Nenhum comentário: